Capa / Cidades / A INCONSTITUCIONAL PEC 215 AMEAÇA DE EXTINÇÃO OS POVOS INDÍGENAS

A INCONSTITUCIONAL PEC 215 AMEAÇA DE EXTINÇÃO OS POVOS INDÍGENAS

Vilson Nery

Resumo

A Câmara dos Deputados está debatendo a Proposta de Emenda à Constituição nº 215, que se propõe a modificar os artigos 49 e 231 da Constituição Federal, implantando alterações extremas quanto às competências para demarcações de terras indígenas. Além de violar dispositivos de acordos internacionais que o Brasil subscreveu e que já foram incorporados ao ordenamento jurídico nacional, a exemplo da OIT 169, a proposta possui vício de tramitação ofensiva ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Logo é inconstitucional por violar regra de procedimento, ofende o princípio da vedação ao retrocesso nos direitos sociais e não suportaria um exame sob a ótica do controle de convencionalidade.

Desenvolvimento

A proposta de alteração na Constituição Federal no tocante à competência e procedimentos nos processos administrativos de demarcação de terras indígenas foi apresentada pelo deputado Almir Sá em 28/03/2000 à Câmara, e publicada no Diário da Câmara dos Deputados nº 71, edição do dia 19/04/2000, uma quarta-feira, “concidentemente” no Dia do Índio, instituído pelo Decreto-Lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943.

Em síntese a proposta modifica a autoridade que detém a competência para aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e para ratificar as demarcações já homologadas. A PEC 215 ainda prevê que somente após essa aprovação ou ratificação as terras indígenas serão inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis. E concluindo estabelece que “os critérios e procedimentos de demarcação das áreas indígenas deverão ser regulamentados por lei”, além de permitir a relativização dos conceitos jurídicos que protegem os indígenas e suas terras.

Por despacho da Mesa Diretora, à PEC 2015 foram apensadas as PECs  579/02, 257/04, 275/04, 319/04 e 156/03.

Ocorre que em 31 de janeiro de 2003 a proposta foi arquivada com fundamento no art. 105 do Regimento Interno, que dispõe que as matérias não votadas em determinada legislatura irão ao arquivo:

Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as: […]

Por questão de racionalidade, o regimento da Câmara dos Deputados prevê as hipóteses em que o processo arquivado em uma legislatura, possa merecer a restauração da tramitação, e a possibilidade está no parágrafo único do art. 105:

Parágrafo único. A proposição poderá ser desarquivada mediante requerimento do Autor, ou Autores, dentro dos primeiros cento e oitenta dias da primeira sessão legislativa ordinária da legislatura subsequente, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava.

Portanto, somente o parlamentar que foi o autor, ou os autores da proposta arquivada, poderiam requerer a restauração da tramitação, o que não ocorreu no caso da PEC 2015. O pedido nesse sentido foi formulado pelo deputado Carlos Sousa em 07/02/2007, e aceito pela Mesa Diretora em 22/03/2007. O parlamentar usou a estratégia de postular desarquivamento em bloco, arrolando em seu pedido cerca de 70 proposições de lei, resoluções e especialmente as PECs 524/2006, 498/2006, 467/2005, 306/2004, 258/2004, 257/2004 e 143/2003. Note-se que a PEC 257 tinha conexão temática com a PEC 215, mas quanto a esta última não houve especificamente nenhum pedido de desarquivamento.

Após isso, mesmo não sendo formalmente restaurado o fluxo de tramitação, a PEC é remetida à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, tendo sido designado relator o deputado Luiz Couto, em 06/05/2005. Em seu parecer, Couto entende que a proposta viola a Constituição Federal e não pode prosperar, devendo pela segunda vez ser arquivada.

Disse o relator:

“Não se alegue, ainda, o disposto no inciso XVI do art. 49 da CF, como justificativa legitimadora das proposições em comento. A atribuição ao Congresso Nacional, da autorização para a exploração e aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais em terras indígenas foi fixada pelo Poder Constituinte originário e somente ocorrerá após fixação de condições específicas, previstas em lei. No caso, o Poder Constituinte derivado não pode pretender reduzir as atribuições que constitucionalmente os constituintes originários não lhe atribuíram. Em conclusão, as propostas em exame, além de acrescentar atribuições ao Poder Legislativo, invadem atribuições do Poder Executivo, condicionando a validade de seus atos à vontade dos membros do Congresso Nacional ou das Assembleias Legislativas dos Estados. Resta, portanto, violado os incisos I e III do § 4º do art. 60 da Constituição Federal, que proíbe a deliberação sobre proposta tendente a abolir a forma federativa de Estado e a separação dos Poderes”.

Atendendo ao parecer, a Mesa Diretora determinou o arquivamento da PEC 2015 em 31/01/2007, e também tendo por fundamento o artigo 105 do Regimento Interno, sendo que o ato foi publicado no Diário Oficial da Câmara, edição de 1º/02/2007, página 20, Suplemento nº 01.

À revelia do regimento interno, a PEC 215 viria novamente a ser desarquivada em 17/06/2008 e designado relator o deputado Geraldo Pudim, que sugeriu modificações no texto. O deputado seria o segundo relator da matéria, que não foi regularmente desarquivada, portanto não há conformidade em sua tramitação, todavia a proposta seria desarquivada novamente, e o deputado Osmar Serraglio designado relator na Comissão Especial destinada a tratar da PEC 2015.

Contrariando os óbices apresentados e com nítida intenção de não enfrentar os problemas que a medida irá gerar, o texto foi aprovado, com proposta de mudanças no art. 61 da Constituição Federal, acrescentando que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que delimitem as terras indígenas. E foi inserida a alteração brutal do art. 231 da CF, praticamente extinguindo as terras indígenas, que somente seriam assim reconhecidas se existentes em 5 de outubro de 1988. E que a posse das terras indígenas poderia ser relativizada em casos de ocupações, intervenção de forças militares, instalação de redes de comunicação, ferrovias, rodovias, hidrelétricas, entre outras possibilidades.

Além de inconstitucional quanto ao vício de tramitação, por não observar a Convenção 169 da OIT, a proposta da PEC 2015 viola o princípio da proibição do retrocesso.

Ora, tão importante quanto concretizar direitos sociais, é o de conferir a eles certa estabilidade, para que o cidadão possa dessa garantia depender, e não ser surpreendido com supressão de direitos.

O princípio de proibição de retrocesso social nasce com a obra de Konrad Hesse, de 1978, quando desenvolveu a sua Teoria da Irreversibilidade. De acordo com a teoria, o Estado estaria vinculado à cláusula do Estado Social previsto na Constituição alemã pertinente a interpretação da legislação existente.

Com base nessa ideia é possível a declaração de inconstitucionalidade de medidas legais que não atendam de forma satisfatória o princípio. O constituinte originário deu um status aos povos indígenas e não pode o constituinte derivado suprimir esses direitos.

Da lição de Luísa Cristina Pinto e Netto, na obra “O princípio de proibição de retrocesso social” (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010) temos que:

“A Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibilidade, desenvolvida por Konrad Hesse, partiria da afirmação de que não se pode induzir o conteúdo substantivo da vinculação social do Estado diretamente da Constituição, mas uma vez produzidas as regulações, uma vez realizada a conformação legal ou regulamentar deste princípio, as medidas regressivas afetadoras destas regulações seriam inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibilidade das conquistas sociais alcançadas.” (NETTO, 2010, página 101/102)

Conclusão

A relação dos povos indígenas com a terra e os recursos naturais que a integram, como os rios e as florestas, possuem natureza diversa daquela demonstrada pelo colonizador, e esse foi o primeiro choque de interesses quando do início da ocupação europeia no Brasil.

Enquanto que para o indígena, respeitadas as variações de culturas dos diversos povos, a terra possui sentido sagrado, o solo seria a prolongação de seus ancestrais, e as poucas modificações na natureza aceitas possuem elo com a agricultura de sobrevivência desses povos, para o não índio o interesse pela terra é econômico e visa a exploração capitalista. As primeiras iniciativas dos europeus colonizadores do Brasil foram a exploração do pau brasil e dos minerais, tratando a terra como objeto de cobiça. Para dar concretude aos intentos coloniais foi necessário invisibilizar os indígenas desprezando sua cultura e seus saberes, e o segundo passo foi a tentativa infrutífera de escravizá-lo.

Ao aprovar a PEC 2015 o legislador viola compromissos que o Brasil assumiu perante os 896 mil indígenas existentes (Fonte: Censo 2010, IBGE), remanescentes de uma população de 5 milhões de pessoas que habitavam o solo brasileiro em 1500, por ocasião da “descoberta”.

O art. 2º da OIT 169 prevê que os governos devem assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos indígenas, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. E que o Estado promova a efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais dos povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições.

Além do controle de convencionalidade acima destacada, pesa contra a PEC 215 o vício de tramitação já identificado, e o desprezo por um anterior parecer de inconstitucionalidade, além da afronta ao princípio da vedação ao retrocesso das políticas sociais.

O arquivamento definitivo da PEC 215 é medida que se impõe, uma vez que a agressão genocida ao povo Guarani, retratado fielmente por Clovis Lugon em “A República Guarani” (São Paulo: Expressão Popular, 2010) e a extinção dos povos Incas conforme descreve Carlos Fausto em “Os índios antes do Brasil” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005) geram efeitos até a contemporaneidade. A fome dos favelados de algumas cidades latino-americanas, e a miséria dos Guarani Kaiowá, povo indígena espalhado pelo território de alguns países sul americanos, incluindo o Brasil, Paraguai e Bolívia, decorrem de agressões que tiveram início há alguns séculos, quando a ganância e a cobiça foram mais fortes que o senso de justiça e a tolerância pelo diferente.

Ao invés de diminuir a importância dos indígenas, presentes em todas as nações do Mercosul, o Brasil deveria dedicar-lhes políticas educacionais adequadas, para que seus saberes e sua cultura, rica em experiências milenares, possam ser traduzidos e publicados em livros, e que o seu conteúdo se torne conhecido de toda a população brasileira.

Vilson Pedro Nery, advogado Especialista em Direito e Controle Externo na Administração Pública pela FGV e Mestrando em Educação pela UFMT. 

Sobre admin

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Required fields are marked *

*

Scroll To Top