A palavra acidente encerra uma conotação de imprevisibilidade. Nesse sentido, um acidente não ocorre de forma planejada ou deliberada, mas como resultado de circunstâncias fortuitas, inesperadas e inevitáveis.
A reflexão etimológica vem a propósito do noticiário envolvendo o rompimento de duas barragens que armazenavam dejetos tóxicos de uma mineradora no distrito de Mariana, Minas Gerais. Cem por cento das notícias tratam o episódio como acidente. Mas terá sido acidente?
No Código de Trânsito, quem dirige embriagado e inadvertidamente provoca uma colisão, com ou sem vítimas, pratica um crime culposo. Da mesma forma é classificado o condutor que possui algum grau acentuado de deficiência visual, como miopia, e dirige sem óculos ou lentes corretivas.
O crime culposo distingue-se do doloso porque neste há intenção de produzir o resultado. No crime culposo, o agente assume o risco de produzir o resultado agindo com imperícia, negligência ou imprudência.
A tragédia de Mariana ainda não encerrou a contabilidade das vítimas fatais, mas trouxe a destruição de dezenas de residências e edificações, bem como a contaminação com metais pesados da bacia hidrográfica do rio Doce, afetando o abastecimento d’água de cerca de meio milhão de brasileiros.
Pode-se afirmar que o rompimento da barragem foi inesperado e era inevitável? Ou, em algum momento, houve, por parte da rica multinacional que explorava a jazida, omissão, negligência ou imperícia na adoção de medidas de segurança que prevenissem o desastre e/ou minimizassem seus efeitos alertando a população circunvizinha ou contendo a propagação da lama tóxica?
Por que não havia sequer sirenes de emergência? Por que não ouviram os alertas do Ministério Público?
Um dos conceitos mais importantes do direito ambiental, acolhido pela nossa Constituição, é o princípio da prevenção, definido como a prioridade que deve ser dada às medidas que eliminem ou reduzam os riscos conhecidos ao meio ambiente decorrentes de determinadas atividades.
Ao lado do princípio da precaução, com o qual não se confunde, o princípio da prevenção é um dos mais combatidos pelos defensores da tese do crescimento econômico a qualquer custo, principalmente a qualquer custo ambiental e social.
São aqueles que,por um lado vociferam contra as normas de proteção ambiental e reclamam da morosidade do licenciamento, e por outro estimulam o sucateamento dos órgãos ambientais, cortando dotações orçamentárias, achatando vencimentos e loteando os cargos de direção.
A aplicação do princípio da prevenção impõe ao poder público o dever de exigir e ao empreendedor o de adotar medidas acautelatórias que evitem a ocorrência de danos ambientais.
A tragédia dentro da tragédia é que o país parece nada aprender com as tragédias. Em 2003, em Cataguazes/MG também houve ruptura de barragem contendo resíduos industriais com o lançamento de toneladas de produtos tóxicos na bacia do Rio Paraíba do Sul, a mais importante do Rio de Janeiro.
Demais dos aspectos ambientais, houve relevantes impactos econômicos e sociais, aí incluída a suspensão do abastecimento de água a oito cidades, atingindo quase seiscentas mil pessoas. Na ocasião, a ministra do Meio Ambiente compareceu ao local e coordenou providências emergenciais.
Muitas das propostas então formuladas perderam-se depois nas gavetas dos ministérios do Planejamento, Minas e Energia e Casa Civil.
Agora, o desastre se ampliou, com vítimas humanas, destruição da fauna e da flora e a atual ministra demorou uma semana para se pronunciar.Há que se apurar também eventual omissão ou conivência dos agentes públicos responsáveis pelo licenciamento e fiscalização das condicionantes ambientais e de segurança do empreendimento.
Muita coisa ainda precisa ser esclarecida sobre a tragédia de Mariana e a responsabilidade da mineradora que curiosamente se apresenta na internet como vencedora de prêmios de ‘responsabilidade socioambiental’. Até lá, considero prematuro e impreciso tratar o episódio como ‘acidente’.
ALALUIZ HENRIQUE LIMA é Conselheiro Substituto do Tribunal de Contas de Mato Grosso.