A arte de mentir nos acompanha desde o nosso “achamento”. Por isso, na semana passada, talvez a maioria de nosso povo tenha assistido, sem constrangimentos, às acusações trocadas entre o Cunha e Dilma. Aquele, sem pejo, diz que essa mentiu, e cita exemplos.
Essa, na cara dura, diz que quem mente é aquele, e cita exemplos.
No meio das acusações, só não sabemos qual dos dois, à lá Pinóquio, terminará com o nariz mais comprido.
Em meio aos destemperos verbais, o Congresso aprovava uma lei que dá licença ao governo de terminar o ano fiscal com um deficit de 120 bi! A camada popular pagará por mais essa.
Mas se a semana já era deprimente por tudo isso, a morte de Marília Pêra acentuou a tristeza do olhar dos que se preocupam com o futuro.
Com sua morte, não as jogatinas políticas, para as quais não tinha habilidade alguma, mas a cultura brasileira perde um de seus mais importantes sujeitos que atuava como atriz, cantora, bailarina, coreógrafa… era completa.
Como fã de seu trabalho, destaco duas de uma série de características positivas suas: o rigor e a disciplina no trabalho. Logo, mais adepta da arte pela arte, e por isso mesmo sempre buscando fazer arte da melhor maneira possível, fosse na dança, no canto, na dramaturgia…, Marília não abria mão de aprender; e sabia que para aprender algo sério, o rigor e disciplina são indispensáveis.
Sem isso, só nos enganamos. Enganamos o outro. Ao enganarmos o outro, nos transformamos em atores de um teatro decadente.
Mas para não dizer que, neste artigo, não falei de “flores vencendo os canhões”, em meio à depressão da semana que passou, eis que surge uma esperança: adolescentes e jovens – todos pobres – de São Paulo venceram o governo Alckmin.
De chofre, derrubaram o secretário de Educação, que insistia, sem diálogo com a sociedade, numa reformulação administrativa pela qual se fechariam unidades escolares.
Mas até que o decreto suspendendo a reformulação administrativa viesse a ser anunciado, os estudantes mostraram a cara e foram à luta.
Um dos primeiros passos dados por eles – que terminaram ocupando ruas e avenidas da capital, enfrentando policias municiados com muito gás de pimenta, bomba de efeito moral, cassetetes etc – começou em uma sala de aula.
E começou com arte! Com um filet musical.
No início de outubro, quando a reformulação foi anunciada, estudantes em uma sala de aula cantaram, dramatizando, alguns versos de “Cálice” – na verdade, “cale-se” – de Chico Buarque e Gilberto Gil (https://www.youtube.com/watch?v=T7MUd11laTI), música feita para denunciar as torturas praticadas pelos golpistas de 64. Ver esse vídeo é pra lá de emocionante.
Quatro estudantes, virados para a parede do fundo da sala, tocam instrumentos de percussão para os demais – todos sentados, virados para a frente da sala, com as mãos postas sobre as carteiras e com olhos vendados – cantarem os seguintes versos:
“Como é difícil acordar calado// Se na calada da noite eu me dano// Quero lançar um grito desumano// Que é uma maneira de ser escutado// Esse silêncio todo me atordoa// Atordoado eu permaneço atento// Na arquibancada pra qualquer momento// Ver emergir o monstro da Lagoa”.
Depois, em cima da mesma melodia, os estudantes adaptaram versos para este momento, denunciando o descaso com as crianças, adolescentes e jovens, o que compromete o futuro.
O recado é forte. Ele vem artística e anonimamente verbalizado pelos interessados diretos em um futuro melhor.
Que os governantes não brinquem com esse tipo de recado.
ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é doutor em Jornalismo pela USP e professor de Literatura da UFMT.document.currentScript.parentNode.insertBefore(s, document.currentScript);