No começo desta semana, integrantes da cúpula da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, do Senado, expressaram divergências sobre a posibilidade de propor o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro pelo crime de genocídio — isto é, a tentativa de aniquilar um determinado grupo nacional, étnico ou religioso. A acusação está presente no parecer elaborado pelo relator, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), e revelada pelo Estadão no domingo.
No texto de Calheiros, a acusação está relacionada com o tratamento dispensado pelo governo aos povos indígenas durante a pandemia. Se a acusação permanecer na versão final do relatório, será a primeira vez que um poder da República qualifica Bolsonaro de “genocida”. Inclusive, cita que o governo “colaborou” para que a pandemia se alastrasse por territórios indígenas de Mato Grosso e outros Estados.
“Resta claro, portanto, que o Presidente da República, pessoalmente e por meio da estrutura organizada e hierárquica de poder, através de diversos Ministérios e órgãos de controle ligados à proteção constitucional dos povos originários, na forma prevista do artigo 231 da Constituição Federal, deliberadamente planejou, incentivou, autorizou e permitiu que a epidemia invadisse e se alastrasse nas comunidades indígenas, em especial nos territórios do Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Ceará e Pernambuco, causando um número inaceitável de mortes, lesões graves, desnutrição, deslocamentos forçados, ataques por grupos armados, contaminação por mercúrio, entre outros atos desumanos de igual gravidade”, citou a CPI.
Mas nem todos os integrantes da CPI concordam com a presença do termo “genocídio” no texto final. Nesta segunda-feira, dia 18, o presidente do colegiado, o senador Omar Aziz (PSD-AM), disse que preferia evitar o indiciamento do presidente da República por este crime específico. No entendimento de Aziz, a acusação seria frágil e prejudicaria a credibilidade do conjunto do relatório.
A exemplo de Aziz, outros integrantes da CPI também têm dúvidas ou são contra a inclusão da acusação de genocídio — inclusive no grupo conhecido como “G7”, formado por sete senadores oposicionistas ou independentes em relação governo Bolsonaro. Inicialmente, o grupo se reuniria na noite desta segunda-feira para discutir os pontos de divergência no relatório. O encontro, porém, foi cancelado, segundo Aziz. Desta forma, a leitura do relatório por Renan ficou agendada para quarta-feira, e a votação do texto será na próxima semana.
“Alguém sabe onde teve genocídio de índios nessa pandemia? Eu não vi nenhuma matéria sobre isso, não tenho conhecimento, não há nenhuma denúncia. Então como eu vou criar uma narrativa sobre uma denúncia que eu não tenho conhecimento”, disse Aziz em entrevista a um canal de TV à cabo, na tarde de segunda-feira. “O meu Estado, que é o que tem mais etnias indígenas, todos os índios, sem exceção, eles tiveram duas doses para cada índio. Foi a primeira carga de vacina que chegou no Estado do Amazonas, os primeiros a serem garantidos”, disse ele.
O texto de Renan traz cinco argumentos principais à favor da inclusão do crime de genocídio — inclusive uma resposta à alegação de que o governo priorizou a vacinação de indígenas. Conheça abaixo os principais pontos.
1. Vacinação prioritária foi determinada pela Justiça
Apesar do que diz o presidente da CPI, a inclusão dos indígenas no grupo prioritário da vacinação só se deu por força de decisões judiciais — e este é um dos argumentos do relatório coordenado por Renan Calheiros a favor da tese de genocídio. No Amazonas, Estado do qual Aziz já foi governador, a decisão de incluir indígenas no grupo prioritário para a vacinação se deu em junho de 2020, a partir de uma ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF).
“Destaque-se que o governo ainda hoje responde às acusações de negligência afirmando que incluiu os indígenas no grupo prioritário de vacinação, mas está documentado que o fez apenas por determinação judicial, à qual resistiu, pois pretendia vacinar apenas os aldeados em terras já homologadas – excluindo 42% dos indígenas, que vivem fora dessas terras, segundo dados do Censo de 2010”, diz um trecho do relatório.
2. Distribuição de “kit Covid”
Um segundo argumento a favor da tese do genocídio é a distribuição, aos indígenas, de medicamentos do chamado “kit covid”, composto por drogas como cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. Ao serem distribuídas, os fármacos já tinham tido sua ineficácia comprovada no combate à covid-19. Durante a gestão do ex-ministro Eduardo Pazuello (Saúde), o governo distribuiu ao menos 265 mil comprimidos do kit para povos indígenas em cinco Estados brasileiros.
De acordo o relatório da CPI, a distribuição dos medicamentos ineficazes aos indígenas “constitui parte da estratégia de enfrentamento da pandemia de covid-19 expressamente assumida por órgãos do governo federal, enquanto faltam medicamentos necessários à intubação de pacientes e a garantia do acesso a água, a itens de higiene e a medidas que limitem contatos externos e previnam aglomerações”.
O relatório de Renan menciona ainda os vetos de Bolsonaro a uma lei aprovada pelo Congresso em julho de 2020, reconhecendo a fragilidade dos povos tradicionais diante da pandemia e determinando medidas para proteger a saúde destas comunidades. Garantia de acesso à água potável, distribuição de materiais de higiene e fornecimento de leitos de UTI foram alguns dos pontos vetados por Bolsonaro na lei, que criou o Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19 nos territórios indígenas. Segundo o relatório, o “elevado número de vetos” é evidência da tentativa do governo de prejudicar estas comunidades.
3. Não demarcação de terras
Um quarto argumento levantado no relatório é a ausência de demarcação de terras indígenas durante o governo de Bolsonaro. Segundo o texto, o governo ofereceu cestas básicas e medicamentos do “kit covid” aos indígenas para “esquivar-se da acusação de negligência deliberada”, mas se recusou a “cumprir seu dever de garantir aspectos fundamentais e realmente eficazes para prevenir a covid-19 entre os indígenas, como o acesso à água e a proteção às terras”. “Esse conjunto de atitudes indica que, com relação aos indígenas, o governo tratou o vírus não como um risco, mas como uma oportunidade”, diz um trecho.
Por fim, o relatório aponta a demora do governo federal em estabelecer um plano coerente e minimamente detalhado de barreiras sanitárias e enfrentamento do vírus entre os indígenas, mesmo diante de determinação do ministro Luís Roberto Barroso (STF). A terceira versão do plano foi rejeitada pelo ministro em dezembro de 2020, por ser considerada insatisfatória e confusa. O texto de Renan inclui uma citação a uma decisão de Barroso, segundo a qual “impressiona que, após quase 10 meses de pandemia, não tenha a União logrado o mínimo: oferecer um plano com seus elementos essenciais, situação que segue expondo a risco a vida e a saúde dos povos indígenas”.
Estadão / Redação