Numa batalha, mesmo que se saia vitorioso, as baixas acabam acontecendo. No caso do povo Puyanawa que enfrenta uma epidemia de Covid-19 dentro da aldeia que infectou a maioria dos seus 671 moradores, a única vítima fatal da doença foi o seu Mário Cordeiro de Lima, de 76 anos. Ironicamente, a morte escolheu o patriarca e primeiro cacique dos Puyanawa, depois da libertação desses índios do jugo de décadas a que foram submetidos por fazendeiros da região. Seu Mário foi um lutador incansável para conseguir a demarcação das terras do seu povo no município de Mâncio Lima (AC) às margens do Rio Môa. Ele tinha o respeito das principais lideranças indígenas e políticas do Acre.
Mas apesar da perda irreparável, os Puyanawa estão vencendo a guerra contra o Covid-19. E as armas utilizadas contra o inimigo invisível são os chás da floresta que aumentam a imunidade do povo para enfrentar o vírus no organismo. O atual cacique Joel Puyanawa, filho do seu Mário, conta que cozinharam milhares de litros de medicina natural para distribuir na comunidade a base de cipó de espera aí, casca de caranapanaúba, quina-quina, boldo, alho e limão. “Muitos poucos que contraíram o Covid-19 aqui na Aldeia tomaram as pílulas que estão sendo usadas nos tratamentos tradicionais,” afirmou o cacique.
Joel Puyanawa e a sua filha durante festival cultural na Aldeia
A situação que os índios enfrentaram poderia ter causado uma tragédia. O cacique Joel conta que nem nos seus piores pesadelos imaginou que um dia veria quase todo o seu povo “arriado” com febre, na cama e sofrendo com o medo da morte eminente por uma enfermidade que já fez milhões de vitimas pelo mundo. “O psicológico das pessoas fica muito afetado com essa doença e isso dificulta ainda mais a cura. Mas quando percebemos o que estava acontecendo isolamos todos. Teve filho que ficou mais de 15 dias sem ver o pai que mora ao lado. Passávamos três vezes nas casas distribuindo o chá diariamente para o povo aumentar a imunidade do corpo,” narra Joel.
É verdade que o médico do Distrito de Saúde Indígena (Dsei) Dr. Éden ajudou muito no processo de enfrentamento da pandemia. “Desde que o povo adoeceu ele veio aqui pra dentro da aldeia para ajudar a tratar os doentes. E foi um dos que mais incentivou as pessoas da comunidade a tomarem os nossos remédios da floresta. Ele veio de Porto Walter (AC) com uma equipe de uma enfermeira e mais duas técnicas em enfermagem,” explicou Joel.
Segundo a narrativa do cacique apenas três Puyanawa precisaram de hospital. O seu Mário, que veio a falecer, e dois jovens, um que já teve alta, e o outro um microscopista da Aldeia, que deve sair do Hospital Regional do Juruá, nos próximos dias, por ter apresentado melhora. “Mas se não fosse a nossa medicina natural acredito que teríamos perdido muito dos nossos ‘parentes’ para essa doença,” reflete ele.
Nessa luta contra o Covid-19, o cacique teve como seu braço direito Luiz Puwe, um dos pajés do povo, que mesmo sentindo os sintomas continuou buscando as plantas na floresta para cozinhar os remédios. “O Puwe curou o vírus trabalhando para ajudar os outros. Mesmo com febre alta não deixou de me ajudar para a gente conseguir acalmar a doença que deixou muita gente por aqui muito mal,” lembra o cacique.
Os cuidados continuam…
Mesmo sabendo que conseguiram vencer a primeira onda de contaminação do Coranavírus, o povo continua isolado nas suas casas e bebendo diariamente as medicinas naturais. A preocupação é constante porque existe o agravante da malária que é uma ameaça constante na Aldeia. Tanto que uma equipe de endemias da prefeitura de Mâncio Lima está fazendo o monitoramento dos possíveis casos da doença entre os Puyanawa para não haver mistura com o Covid-19.
Agora, ao contrário do que alguns pensam, os indígenas são muito trabalhadores. Mesmo com quase toda comunidade sofrendo com a enfermidade causada pelo Covid-19 aqueles que estavam bem continuaram trabalhando nos roçados para garantir alimentação de toda a Aldeia. Os Puyanawa receberam algumas doações de cestas básicas e ferramentas de trabalho do mestre humanitário, Sri Prem Baba, mas a base dos alimentos para a população foi tirada da lavoura produzida por eles.
Uma história de superação
Joel recebeu a missão de conduzir o seu povo como cacique do seu pai há alguns anos. Durante esse período os Puyanawa fizeram uma grande revolução social retornando à cultura original. Recuperaram o idioma, assumiram a espiritualidade dos ancestrais e se tornaram guardiões da floresta. Para se ter uma ideia da mudança, há cerca de 15 anos 90% do povo era evangélico. Houve uma inversão e atualmente 90% dos Puyanawa seguem as tradições indígenas participando de pajelanças com ayahuasca e outras plantas da floresta. Mesmo assim, não há nem um conflito porque o cacique Joel faz questão de respeitar os católicos e evangélicos que moram na Aldeia.
Os Puyanawa estão acostumados com as dificuldades. Passaram um período praticamente como escravos de fazendeiros e enfrentaram no contato com os brancos uma epidemia de gripe, no começo do século XX, que quase dizimou toda a etnia. Mas sobreviveram a todas essas ameaças e hoje são orgulhosos por terem retomado o contato com os seus ancestrais. Os jovens cantam e falam o idioma original e quase todo o povo se veste como os antepassados nos dias de festas e pajelanças.
Essa retomada cultural tem atraído pessoas de várias parte do mundo para a Aldeia que reconhecem o valor inestimável do trabalho espiritual de cura desse povo. E é bem possível, que graças a retomada dessas tradições ancestrais, mais uma vez o povo Puyanawa tenha conseguido sobreviver a essa tragédia causada pelo Coranavírus que afetou toda a humanidade. E, segundo o cacique, os aprendizados dessa experiência servirão como um aviso para o futuro.
“Vamos continuar distribuindo esses remédios da floresta para a nossa comunidade se prevenir. Porque com essa destruição da natureza que estão promovendo no mundo não se sabe qual poderá ser a outra ameaça que virá,” finalizou Joel Puyanawa.
O pajé Puwe e o jornalista Nelson Liano na floresta da terra Puyanawa
Puwe, Christiana, Prem Baba e Joel depois de uma pajelança na Aldeia Puyanawa
Governador Gladson Cameli com Joel, Puwe, Vari, Nelson Liano e Iraci